Protejo-te


Poema
resgato-te à tempestade,
protejo-te na escondida fragilidade
como compete a um poeta.

Canto-te as palavras
sílaba a sílaba
como se conjuga um verbo
num limbo de paixão.

Os ventos
vão modelar-te
na pedra granítica
polida pelas minhas mãos
e continuarei a guardar-te,
poema,
como se de silêncio
as palavras se tornassem.

*
© Fernando Neto
*

Sonhar

 


Sonhar

 

A vida...

Será sempre uma caixa de surpresas,

Para quem vive no improviso...

Tendo como meta

A facilidade...

E

Caminhamos juntos na areia húmida da praia para que outros

Possam seguir as nossas pegadas…

 

©Fernando Neto

Quase nunca é um poema

 


Quase nunca é um poema

mas faço da palavra liturgia

e trêmulo perambulo alegorias

adormeço em vigília da sintaxe

quase nunca é um poema

mas se um dia for

ofereço-vos numa consoada.

 

©Fernando Neto

 

Sombra Branca

Sombra branca
lunar
que te enfeita o cabelo
regressado do lume da tarde.
Ângulo inverso das horas
subtraídas à contemplação
nesta noite de repouso
por isso clandestina
de horas mínimas.

Aqui somos o sinal da eternidade
no momento de recusa
das ampulhetas do tempo.

Assim sou. Assim és:
de luz branca
sem tempo.

*

© Fernando Neto

*

Febre


Encosto a febre
às lágrimas da chuva na janela
agora que a sede é mais forte
e os teus lábios se ausentaram

Não quero ninguém por perto
prefiro a impotência de não ser chuva
de não ser pássaro
em direcção àquelas nuvens

Neste semear de gemidos roucos
pressinto o mar que não vejo
a afagar as escamas do meu corpo

A mão não procura a espuma
nem anoiteço

Espero-te para contigo navegar
depois da chuva
depois da febre

*
© Fernando Neto

*

Uma noite de fados a atravessar a memória


Dor que o tempo leva a pouco e pouco
amor maior, imagem que cresce
lembrei-te nesta noite que não troco
memória que num fado acontece

Saíste de mim num dia bravio
procurei teu rosto em todos os cantos
rasguei o peito, enchi-me de frio
o inverno deixou uma chuva de prantos

Busquei a ternura com que falavas
senti a tua mão na minha face
encontrei-te na voz que não esqueço

Nos fados que ouvi tu lá estavas
hoje e por muito tempo que passe
sempre, meu pai, meu amigo, meu berço.

©Fernando Neto (1976)


Quem passa por mim não vê...


Quem passa por mim
não vê
que homem aqui chegou,
só viu matéria por fora
por dentro nem se lembrou.
Só quero ser, por ora,
um homem que sabe amar,
solitário na solidão
sem inspirar comiseração.
Não me afundarei
em qualquer rio revoltoso.
Nenhuma onda ou túnel
escurecerão a minha vontade.
Sou eu, inteiro e sem ódios
que o meu coração não guarda.
Serei amanhã o que for
com os amigos em meu redor.

©Fernando Neto

Encontrei-te


Encontrei-te por dentro das mãos,
na orla do teu sorriso
e nos teus olhos meigos.

Fixamo-nos tão ternamente
como nos esperássemos desde sempre.

Baixaste os olhos sem deixar de sorrir.

Suavemente te aflorei o rosto,
escrevi um verso nos teus cabelos
e os nossos lábios tocaram-se
com um sabor novo.

Demoramo-nos na contemplação do outro
e de mão na mão soubemos
que começava ali o nosso sol.

©Fernando Neto

Pontes do Infinito

 

Pois é...quem pode medir a essência do infinito, ou o alcance da sua mágoa por ser tudo e não ter consciência do que é um princípio e um fim, um começo e uma paragem, uma interrogação e uma resposta...
Então podemos tocar o simples e na complexidade da racionalidade achar de novo o...simples...
Como formigas de ar, vemos uma ponte chamada eternidade despontar sobre nós...e por isso decompomos a fartura da imaginação criativa em pequenas pedras apenas férteis mentalmente. Assim aparecem-nos finalmente as medidas das coisas, e nós homens que vivemos na ponte da eternidade, vimo-nos cansados sobre o tropeçar das pedras dos anos, horas, minutos e segundos. Torna-se assim evidente que quanto mais pedras as nossas rugas mentais suportarem, mais sábios somos, mas no fundo ninguém ultrapassou essa ponte. Nem o fará enquanto a gula dessas pedras continuar. Há pontes que não foram feitas para se chegar de um sítio a outro, mas apenas para nos sentar-mos nelas, de pés vogando no vazio e onde os sóis da serenidade se põem para logo regressar, enquanto rios de curiosidade navegam debaixo de nós. 
Assim são as pontes do infinito e da Eternidade.

©Fernando Neto

Sapatos



 Repare nos sapatos,

Rotos, baços,

Bagaços sem duração.

E beijam o chão.

 

Repare nos tênis,

Os que custam poucos níqueis,

Os que valem quinze vezes

Uma boa refeição.

Todos acarinham

E beijam o chão.

 

Repare nas sandálias,

As de borracha,

Ou aquelas cujas tiras

Sobem pelos tornozelos,

Ou as de couro, sem zelo

Na produção.

Todas feitas para o beija-chão,

 

O mesmo chão que enterrará

Os pés

Após tantos passos passados.

 

Por isso é justo que haja

Um museu dos calçados.

©Fernando Neto

Ressaca


A inesperada silhueta da sombra
que a noite desperta
entre o luar e as árvores nuas
aproxima-me do promontório
abismo insondável
dos meus sonhos negros.

Nem a mão que repousa na esperança
da luz total das tuas mãos
me devolve à plenitude da lucidez.

Há um espaço por preencher
no relevo da parábola
verbo que esventra a noite
quando a tua ausência é presente.

Dilacero as esquinas do granito
mãos ensanguentadas
no pescoço da madrugada
até que o sal apazigue a angústia
ou a bebedeira me passe.
*

©Fernando Neto

*

Hoje apeteceu-me GRITAR



Que bom seria uma gruta, um grito, um silêncio, um relâmpago, qualquer coisa sem ampulhetas, simples de instante à medida do desejo sonolento, sem carrilhões de tempo eterno até ver.

Um campo de papoilas onde o vento só balbuciasse uma cidade de luzes silenciosa.

Silêncio para ouvir a minha ânsia, a inquietação, o baile das palavras por arrumar, o espaço onde me quero, na latitude que procuro.

Um relâmpago, um vento, uma carícia, uma estrada uma mão, um mapa onde me perca, me subverta, me alimente.

Um livro. Talvez um livro!

Um livro oráculo com os mistérios que eu não sei, um livro com as palavras por aprender, um livro para caminhar e para ler todos os dias sem acabar.

Um livro. Só.


© Fernando Neto

Recomeçar...

Um dia tirei do fundo das gavetas lembranças que não uso e que não quero mais!
Peguei nas palavras de raiva e de dor que estavam na prateleira de cima da estante, e atirei-as fora!
Recolhi com carinho o amor encontrado, dobrei direitinho os desejos, coloquei perfume na esperança, passei um paninho na prateleira das minhas metas, deixei-as à mostra, para não as perder de vista.
Coloquei nas prateleiras de baixo algumas lembranças da infância, na gaveta de cima as da minha juventude e, pendurado bem à minha frente, coloquei a minha capacidade de amar, e principalmente de recomeçar...

Releio
Releio os versos que escrevi,
Mudo os poemas de lugar,
Folheio livros que já li
E sei que ainda há muito para escrever.
Tomo o gosto ao som das palavras,
Tacteio a textura das cores
E viro-me para o papel sem sinais
Onde quero escrever AMOR
Com outras cores e sons.
A espera recomeça
E chega-me o eco das palavras
Que todos já escreveram.
Afinal só falta escrever nada
Ou tudo outra vez
Com a voz a tremer
Porque o poema é o pulsar da alma.

©Fernando Neto



Os meus dias...


Os meus dias escoam-se
como o passar das páginas
de um livro já lido.

Têm as palavras decoradas
como uma sinfonia
de tantas vezes ouvida.

Mas cada um é distinto
e melhor caminham para um livro
por escrever
com palavras novas
e novos perfumes.

Rasgão luminoso
que fenderá a noite escura.

©Fernando Neto

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